Por Fernando Lopes e Marcella Zorzo

Se nós quereremos vencer o autoritarismo, proteger as liberdades, cumprir a Constituição, e inserir o Brasil como nação pioneira no uso de tecnologias disruptivas como os smartcontracts, então precisamos travar essa batalha na arena adequada. 

Ou seja, não é impedindo o fim do dinheiro físico que conseguiremos proteger o Estado de eventuais governos autoritários, mas garantindo que as mesmas liberdades hoje existentes no mundo físico sejam transpostas para o ambiente digital. 

Tecnologias para isso já temos, seja no campo das redes sociais, a exemplo do projeto Nostr, mas também no âmbito das finanças, dada a possibilidade do uso de smartcontracts para criação do chamado “dinheiro programável”. 

Dinheiro programável é aquele que pode ter suas condições de uso previamente programadas por meio de programas de computador especiais chamados de smartcontracts. 

Ou seja, a depender de como essa nova espécie de dinheiro for programada, poderemos ter ou um dinheiro capaz de fomentar a inovação, sem violar garantias fundamentais, ou o contrário. 

Após o lançamento pelo Banco Central do Brasil de projeto que visa criar uma versão brasileira de dinheiro programável, intitulada DREX, grande parcela da sociedade se mostrou contrariada alegando que isso poderia possibilitar “ao governo um nível de controle sem precedentes sobre a vida financeira de cada indivíduo, podendo levar ao““cancelamento financeiro” de opositores políticos e críticos do governo”.

De acordo com a Deputada Júlia Janatta, por exemplo, que recentemente apresentou projeto de Lei visando impedir o fim do dinheiro no formato de papel, “a implementação compulsória e a falta de clareza sobre a segurança do sistema digital”aumentariam esses riscos.

Essas preocupações são justificadas por profundos conhecedores do assunto, como o matemático Charles Hoskinson, que ao participar de evento no Brasil sobre o tema, ou seja, no Blockchain Rio, que contou também com a presença do Presidente do Banco Central, afirmou: 

“Quando você tem uma CBDC e a projeta do jeito errado, se o governo não gostar de você, eles podem simplesmente desligar o seu dinheiro. Assim como uma empresa de energia pode cortar a luz da sua casa, eles poderiam tirar o seu dinheiro e talvez devolver, talvez não”, disse ele. (…) Então não é uma coincidência que muitos ditadores gostam bastante de CBDCs”, acrescentou.

Como exemplo do uso ditatorial das cbdcs, sigla que abrange projetos de criação de moedas digitais pelos bancos centrais, como a DREX, referido matemático cita o caso da China, que segundo ele, estaria criando um sistema para implementação de uma espécie de tirania algorítmica:

“A China é um grande exemplo disso, onde o Banco Popular da China está rodando um piloto com 200 milhões de pessoas e o objetivo deles é juntar o crédito social com o sistema CBDC para ter uma espécie de tirania algorítmica”

Diante desse quadro ameaçador aos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, a pergunta que surge é a seguinte:

Como o Estado pode promover inovação no setor financeiro, mediante uso de tecnologias disruptivas como os smartcontracts, mas sem violar preceitos jurídicos basilares da nossa sociedade?

Certamente não é impedindo a fim do dinheiro no formato de papel, visto que o dinheiro nesse formato tende a desaparecer naturalmente, sem contar que a maior parte das transações hoje já ocorre na forma digital, mediante uso da moeda escritural.

A solução aqui proposta é fazer com que o dinheiro programável tenha as mesmas características do dinheiro no formato de papel, algo perfeitamente possível, dado o uso de smartcontracts para emissão da DREX.

Explicamos.

A DREX, em sua versão como “real do varejo”, é um token, um tipo especial de ativo digital cuja criação e negociação é controlada por programas de computador chamados de smartcontracts. 

Embora não seja uma criptomoeda como a bitcoin, assim como esta terá suas transações programadas por smartcontracts. Logo, caso seja programada de forma a reproduzir características do dinheiro em espécie, então além de assegurar o cumprimento das garantias constitucionais, poderá contribuir para resolução de graves problemas que assolam o comércio eletrônico, conforme podemos ver logo na introdução do Whitepaper do Bitcoin:

“O comércio na Internet tem dependido quase exclusivamente de instituições financeiras que servem como terceiros confiáveis para processar pagamentos eletrônicos. Enquanto o sistema funciona bem para a maioria das operações, ainda sofre com as deficiências inerentes ao modelo baseado em confiança. Transações completamente não-reversíveis não são possíveis, uma vez que as instituições financeiras não podem evitar a mediação de conflitos. O custo da mediação aumenta os custos de transação, o que limita o tamanho mínimo prático da transação e elimina a possibilidade de pequenas transações ocasionais, e há um custo mais amplo na perda da capacidade de fazer pagamentos não reversível para serviços não reversíveis. Com a possibilidade de reversão, a necessidade de confiança se espalha. Comerciantes devem ser cautelosos com os seus clientes, incomodando-os para obter mais informações do que seria de outra forma necessária. Uma certa percentagem de fraude é aceita como inevitável. Estes custos e incertezas de pagamento podem ser evitados ao vivo usando moeda físicamas não existe nenhum mecanismo para fazer pagamentos ao longo de um canal de comunicação sem uma parte confiável. O que é necessário é um sistema de pagamento eletrônico baseado em prova criptográfica em vez de confiança, permitindo a quaisquer duas partes dispostas a transacionar diretamente uma com a outra sem a necessidade de um terceiro confiável.” ( grifo nosso).

No caso da DREX, que contrariamente à bitcoin não será criada como recompensa aos responsáveis pela validação das transações, mas como mero novo formato da moeda escritural ou moeda eletrônica, o modelo de smartcontract utilizado émais amplo, baseado na Ethereum, o que torna ainda mais fácil a atribuição de propriedades do dinheiro físico ao dinheiro programável.

Por exemplo, por meio de Lei pode ser determinado que os smartcontracts da DREX sejam construídos de modo a evitar que o owner do contrato seja o Banco Central ou qualquer outro agente capaz de interferir posteriormente nas transações.

Contrariamente ao que ocorre com stablecoins como a Tether, onde há possibilidade de congelamento dos ativos, o Banco Central tem a oportunidade de lançar um token lastreado na moeda estatal, porém com mais segurança que a oferecida pelas stablecoins.

Outra questão essencial é permitir que os usuários possam ter total controle sobre seus ativos, mediante liberação da autocustódia, algo possível em relação às stablecoins.

Dever-se-á ainda permitir a livre transferência do ativo, incondicionada a qualquer prévia identificação, tal como ocorre com a moeda física, no contexto de blockchains públicas, tal como sugerido por Hoskinson:

“Por isso eu gosto de CBDCs criadas como criptomoedas em blockchains de forma aberta, porque isso significa que direitos estão sendo construídos dentro do sistema, e aí um governo não poderia fazer esse tipo de coisa”

Muitas outras sugestões poderiam ainda ser abordadas, devendo esse debate ser ampliado com a sociedade, incluindo a participação de desenvolvedores e juristas especializados.

Em síntese, se um dos objetivos da DREX é concorrer com as stablecoins, então é preciso apresentar um projeto superior a elas, capaz de assegurar não só maior garantia em relação ao lastro, mas também em relação à proteção de direitos e garantias fundamentais. 

Fernando Lopes e Marcella Zorzo são coautores do livro “ O Guia Jurídico da Tokenização”, cofundadores do primeiro escritório do Brasil especializado em tokenização e finanças descentralizadas (DEFI).

Instagram: @lopes_zorzo_advocacia

Site: https://lopesezorzo.com

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