Por PROF. DR. GIOVANNI GALVÃO: consultoriagiovannigalvao@gmail.com

Pode parecer incrível, mas embora os animais domésticos inegavelmente ocupem parte significativamente importante da vida de muitos humanos, até hoje eles são considerados, no Brasil, apenas como “coisas”. Coisa móvel, ou objeto.  

Desde o Código Civil de 1916 os animais já eram considerados “coisas” (semoventes) e assim classificados.

Ainda é assim no Código Civil Brasileiro de 2002, que quase nada alterou na “coisificação” e no tratamento jurídico dispensado aos animais.

A lei dos crimes ambientais os classifica como “recursos naturais” ou “bens de uso comum do povo” não sendo eles, portanto, para essa lei, plenos “sujeitos de direito”.

Animais somos todos: nós (humanos, racionais, conscientes) e eles (não humanos, irracionais, sencientes). E embora animais não humanos não façam parte da “espécie humana”, não é aceitável desconhecer que, tanto quanto nós, eles sentem fome, frio, calor, dor, medo e outras emoções (piedade diante do sofrimento de um semelhante, compaixão e depressão quando um membro da comunidade morre) e conseguem comunicar-se entre si e apenas não se comunicam conosco na inteireza de como talvez o desejássemos. 

Além disto, para bem analisar este tema é preciso reconhecer que animais têm o direito de ser tratados como seres vivos que são; não exatamente como uma pessoa, mas também não como uma propriedade ou mera coisa. E isto não é apenas uma questão conceitual, mas um profundo dilema ético e de política legal e jurídica que exige reconhecimento, encaminhamento e solução. 

Vejamos o chimpanzé, por exemplo: ele “tem habilidades cognitivas avançadas, incluindo a de lembrar o passado e planejar o futuro, a capacidade de autoconhecimento e autocontrole e a habilidade de se comunicar através da linguagem dos sinais; cria ferramentas para capturar insetos; se reconhece em espelhos, fotografias e imagens de televisão; imita outros; tem até mesmo senso de humor; e demonstra autonomia ao realizar ações intencionais, adequadamente informadas, sem influências controladoras; é um animal inteligente, mas não humano, que pensa, planeja e aprecia a vida como um ser humano e tem o direito à proteção da lei contra crueldades arbitrárias e detenções forçadas; tratar um chimpanzé como se não tivesse direito à liberdade é negar totalmente seu valor e considerá-lo apenas um uma coisa cujo valor consiste apenas em sua utilidade para os humanos; deveríamos considerar se um chimpanzé é um indivíduo com valor inerente e que tem o direito de ser tratado com respeito”.

Nós humanos estabelecemos há milênios com eles uma relação utilitarista que (pelo menos em relação a muitos deles) não tem mais lugar. É preciso conferir a eles um novo regime jurídico, suis generis, que lhes reconheça alguns direitos.

É o que pretende o Projeto de Lei 6054/2019 (numeração antiga PL 6799/2013, de autoria do Deputado Ricardo Izar) atualmente em tramitação final na Câmara dos Deputados do Brasil. Já foi aprovado anteriormente pela Câmara, aprovado depois pelo Senado Federal e voltou à Câmara por ter sido alterado pelo Senado. Daí estar em tramitação final, tendo sido requerida sua urgência em julho de 2020, o que pode acontecer a qualquer momento e produzir sua aprovação final.

Atualmente o Projeto está, desde 05/12/2019, na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS) da Câmara dos Deputados e foi Designado Relator o Deputado Célio Studart (PV-CE). 

O que se pretende é a harmonização da legislação brasileira ao “Tratado de Amsterdã”, no que concerne ao “Protocolo Relativo à Proteção e ao Bem-Estar dos Animais”.

As regras atualmente aplicáveis à relação humanos/animais não humanos se limitam à categorização de “proteção ambiental”. Ou seja: animais não humanos são parte do meio ambiente; como devemos proteger o meio ambiente, consequentemente devemos protegê-los também. 

Embora esta possa ser uma motivação adequada no que toca aos animais silvestres (selvagens), decididamente não é em relação aos animais domésticos não destinados a consumo humano. Estes estabelecem conosco uma relação de confiança que não temos o direito de frustrar.

Então devemos protegê-los porque fazem parte de nossa vida, de nossa família ou comunidade e porque confiam em nós. Não temos o direito de maltratá-los não porque fazem parte do meio ambiente, mas por reconhecimento de uma dignidade de que eles também são credores, quase como os demais seres (os humanos) com os quais convivemos. 

Assim como idosos e crianças, os animais são também frágeis e vulneráveis. E é por esta condição específica que devemos tratá-los não com piedade, mas com dignidade, levando em conta seus interesses próprios, de modo que o bem jurídico tutelado nesta relação não fique restrito à função ecológica que eles possam eventualmente desempenhar. 

Anda bem o projeto quando reconhece que os animais são “seres sencientes” e lhes outorga classificação jurídica específica: passam a ser “sujeitos de direito despersonificados”.

Age corretamente também quando deixa claro, no art. 82 do Código Civil, que essa regra (bens móveis, coisas) não se aplica aos animais.

Qual o motivo dessa preocupação do legislador em classificar os animais como dotados de “personalidade jurídica sui generis” ?

“Personalidade jurídica” é o cerne, a unidade que sustenta, juridicamente, todos os indivíduos, garantindo-lhes um mínimo de proteção de direitos fundamentais. Quem tem personalidade jurídica, pode ser titular de direitos e assim gozar de uma proteção básica e fundamental. 

No mundo do direito houve um tempo em que apenas pessoas naturais tinham personalidade jurídica e, com isto, direitos reconhecidos. E como elas estabelecessem cada vez mais aproximado relacionamento com empresas (em geral bem-sucedidos, mas que eventualmente produziam dificuldades, entraves e problemas de toda ordem, que cumpria solucionar), foi necessário reconhecer a existência dessas empresas como pessoas, do que resultou o reconhecimento da figura das pessoas naturais (pessoas físicas) e a criação das pessoas empresariais (não naturais, meramente jurídicas, ou “pessoas jurídicas”). 

Mas há muito tempo a sociedade também percebeu (a doutrina jurídica posteriormente acolheu e o judiciário reconheceu) a existência de algumas situações em que é preciso reconhecer alguns direitos e estabelecer uma rede de proteção desses direitos, sem necessariamente personaliza-las. É o que acontece com condomínios (que hoje podem defender seus direitos em juízo sem necessariamente estarem personalizados, como pessoa jurídica) e acontece também com espólios e massa falida, por exemplo. Síndico, inventariante e administrador judicial representam (respectivamente) essas entidades quando elas precisam (entre outras situações) ingressar com alguma ação em juízo ou defender-se de alguma ação proposta. 

A jurisprudência brasileira e estrangeira são repletas de casos de animais em favor dos quais algumas pessoas ou entidades ingressaram com ações judiciais buscando proteção; alguns poucos bem-sucedidos, mas a maioria rejeitada ante a questão técnico-jurídica de os animais serem desprovidos de personalidade jurídica e de direitos. A aprovação deste projeto como está resolverá de uma vez esta polêmica.

Como não é recomendável que o legislador personifique cada animal (pois a personificação ensejaria reconhecimento de cada um deles passar a ser “sujeito de direitos”) mas também não é recomendável permitir a continuidade da situação atual em que os animais são totalmente desprovidos de qualquer direito, a futura nova lei deverá buscar um meio termo e reconhecer cada animal como detentor de um direito especial, diferenciado, de ser defendido por um representante quando for necessário buscar proteção (tutela) perante o Poder Judiciário ou a algum órgão público. Um direito que nasce não do fato de ele ser o “amendoim”, o “chico”, a “charlote”, a “honney”, a “belle”, o “nenê”, a “julie”, o “ralph”, o “tommy” ou a “lauren”, mas do fato de ser um animal senciente, cuja situação demanda proteção. 

Um direito, portanto, decorrente do fato de se tratar de um “membro de uma espécie” e não do fato de se tratar de “um determinado indivíduo”. Mas ainda assim, “sujeito de direito”. De um direito que quando necessário será defendido por outra pessoa (física ou jurídica) ou órgão. 

Quem poderá ou deverá ser esse representante, é assunto para futura discussão (Ministério Público? Defensoria Pública? ONG´s?) mas reconhecer a coletividade dos animais como passível de direitos, embora despersonalizados, já é alguma coisa. 

Teria sido melhor aprovar o projeto anexo do Deputado Eliseu Padilha, que acrescentava um artigo (2-A) ao Código Civil, no sentido de que “os animais gozam de personalidade jurídica sui generis que os tornam sujeitos de direitos fundamentais em reconhecimento a sua condição de seres sencientes. São considerados direitos fundamentais a alimentação, a integridade física, a liberdade, dentre outros necessários a sobrevivência digna do animal”.

Esse projeto terminou rejeitado pela Relatora na Comissão de Meio Ambiente, Deputada Soraya Santos, que além disto entendeu melhor alterar a Lei 9.605/98 e não o Código Civil. Mera tecnicalidade. 

Há, todavia, severa impropriedade no projeto atualmente em tramitação: uma omissão importante que pode comprometer a futura defesa jurídica e até mesmo jurisdicional (perante tribunais) dos animais vítimas de maus tratos: eles não são ali declarados como “dotados de dignidade”.

A dignidade não é atributo apenas humano. É um valor moral e espiritual que se irradia para além da pessoa humana, envolvendo os animais não humanos. 

Só coisas não têm dignidade. E o projeto afirma categoricamente que animais não podem ser considerados como “coisa”. A inferência de que animais têm dignidade é, então, decorrência natural deste raciocínio.

O fato de nossa Constituição Federal limitar o conceito da dignidade à “pessoa humana” (inc. III do art. 1o do texto constitucional) não proíbe nem elimina a possibilidade jurídica de estendermos este conceito a todos os animais (humanos e não humanos). 

Não é por outro motivo que o projeto nasceu e existe: exatamente porque os animais não humanos são, tanto quanto nós, dignos de respeito, porque sujeitos de dignidade. 

Quando protegemos um animal contra algum ato de caráter degradante, quando buscamos garantir a eles condições mínimas de existência livre de desnecessários sofrimentos produzidos por humanos, quando atuamos para garantir a eles que participem de nossa existência de forma a melhorar nossa própria qualidade de vida, nestas e em inúmeras outras situações estamos protegendo sua dignidade e não meramente sua “natureza jurídica sui generis”. Esta é instrumental. Aquela é substancial. 

Por tais motivos a redação do art. 3o desse projeto de lei deveria ser: 

Art. 3º Os animais não humanos são seres vivos dotados de sensibilidade, possuem natureza jurídica sui generis e são sujeitos com direitos despersonificados à dignidade, ao respeito a esta condição, e de obter tutela jurisdicional em caso de violação, vedado o seu tratamento como coisa.

Apenas com esta declaração de dignidade inerente aos animais não humanos será possível entender a exceção colocada (como emenda) pelo Senado Federal no parágrafo único do art. 3o, quando afirma que determinados animais, embora não possam ter seus direitos defendidos/protegidos em juízo (animais destinados à produção pecuária, à pesquisa científica e participantes da chamada cultura imaterial) ainda assim é necessário preservar-lhes a dignidade. 

Esse parágrafo está inteiramente correto quando determina esta proteção à dignidade, mas está “solto” no texto. É preciso que o “caput” a que este parágrafo pertence afirme a existência dessa dignidade para que o parágrafo possa reafirmá-la como existente apesar das exceções que ele cria. 

Assim, embora a futura nova lei não reconheça para nenhum animal uma “personalidade jurídica”, todos passam a ter direito próprio, de acordo com sua espécie, natureza e sensibilidade. A natureza jurídica suis generis passa a possibilitar a defesa (tutela) desses direitos, por meio de representantes, o que em direito processual civil se chama “legitimidade substitutiva”, por defenderem interesses jurídicos alheios.

Ideal mesmo seria que o Legislativo Nacional Brasileiro se dedicasse à criação de um “Estatuto dos Animais”, que envolvesse toda a legislação substantiva (direitos) e adjetiva (instrumentos de defesa desses direitos), o que incluiria os crimes contra a fauna, revogando neste particular a Lei dos Crimes Ambientais, garantindo assim aos animais não humanos todo um conjunto normativo contemporâneo, coerente, harmônico e sistematizado como rede de direitos e de proteção.  

Mas a aprovação desse projeto de lei já constitui um avanço em relação à precariedade da situação jurídica atual. 

Afinal, como seres conscientes, nós humanos temos o dever de respeitar todas as formas de vida, evitar-lhes sofrimento e protegê-los de violações. A futura lei será importante instrumento para se atingir estes objetivos.


A Emenda do Senado tem a seguinte redação:  Emenda do Senado ao Projeto de Lei da Câmara nº 27, de 2018 (PL nº 6.799, de 2013, na Casa de origem), que “Acrescenta dispositivo à Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, para dispor sobre a natureza jurídica dos animais não humanos”. Art. 3º (…) Parágrafo único. A tutela jurisdicional referida no caput não se aplica ao uso e à disposição dos animais empregados na produção agropecuária e na pesquisa científica nem aos animais que participam de manifestações culturais registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, resguardada a sua dignidade.”

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