Por Paulo Anselmo Nunes Felippe
A Biologia da Conservação é uma ciência de crise que nasceu ao final da década de 1980 frente a percepção da humanidade de que o chamado “progresso” trouxera problemas ao meio ambiente que poderiam inviabilizar nossa existência na face da terra. Coube a esta ciência entender o impacto da existência humana sobre espécies, comunidades e ecossistemas de forma que fosse possível se desenvolver abordagens práticas no sentido de recuperar e conservar o meio biótico e abiótico objetivando harmonizar a existência humana e a biodiversidade do planeta. Este novo olhar sobre o ambiente fez com que senso comum se organizasse através de conferências internacionais, criasse legislações específicas (ditas ambientais) além da inserção na agenda de programas e projetos destinados a conservação da fauna e da flora pelo mundo. Observou-se, desta feita, uma rápida “reação” da humanidade que incluiu esta ciência no portfólio de disciplinas e de estudos científicos pelo mundo afora. Ao final do século XX (década de 1980 e 1990) algo inusitado chama a atenção mundial. Quando se acreditava (Teoria da Transição Epidemiológica) que as doenças infectocontagiosas perderiam importância, frente as crônico degenerativas, devido, a criação das vacinas, quimioterápicos e antibióticos, dentre outros, surge uma nova pandemia a AIDS. Este agravo a saúde “inaugurou” o conceito de doença emergente, o seu agente etiológico, um retrovírus que circulava nas populações de chipanzés e de macacos mangabey na África (República de Camarões e Guiné Bissau) passou para os humanos devido aos impactos ambientais causados pelo aumento da atividade comercial e crescimento das cidades. O vírus da AIDS, frente a uma comunidade científica despreparada para tanto, demorou quase 5 anos para ser descoberto e para ele até hoje não se tem vacina nem tratamento curativo (colocando em xeque a Teoria da Transição Epidemiológica). Sem a característica de pandemia, porém não menos importante, emergiram nesta fase da história, dois novos vírus, a partir de reservatórios de primatas (impacto humano no ambiente) o causador do Ebola e o da doença de Marburg, ambos, nos dias de hoje, vem ganhando protagonismo, se espalhando pelo território africano dispersados por morcegos.
A novidade foi a descoberta de que aqueles microrganismos “bem comportados” da visão pasteuriana, que tinham nome e hospedeiros específicos, também estão em processo de evolução e que o impacto sobre seus hospedeiros originais só é mais um desafio seletivo fazendo com que se adaptem a novos (lembrando que a taxa de evolução de vírus e bactérias é altíssima quando comparada a dos animais vertebrados). Descobriu-se ainda que este processo de seleção poderia se dar pelos antibióticos, vacinas, quimioterápicos funcionando enquanto desafios seletivos para os microrganismos que haveriam de combater. O ressurgimento, com novos perfis epidemiológicos da tuberculose, leishmaniose, peste, doença de lyme, febre amarela, superbactérias (resistentes aos antibióticos conhecidos), dentre outras, “inaugurou” outro conceito o das doenças reemergentes.
Um bom e pertinente exemplo é o dos Coronavírus, a família Coronavirídae que é composta por vírus de genoma RNA, é muito plástica na infecção de novos hospedeiros. Quando estes microrganismos invadem uma determinada célula fazem diversas cópias deles mesmos e saem para infectar novas (esta é a rotina de um vírus), o problema é que a enzina que faz cópias para os vírus “filhos” (RNA polimerase), erra, e muito, ou seja, a cada 10 3 nucleotídeos que copia erra 1 (mutação) e, considerando o tamanho de cerca 30.000 nucleotídeos dos genomas dos Coronavírus, quando os vírions saem das células, não existe nenhum igual ao outro. Muitos não conseguem existir (defectivos), mas outros sim e eventualmente podem infectar novos hospedeiros. Portanto, sempre que ocorre a sobreposição de nichos ecológicos entre humanos e animais uma eventual transmissão e adaptação de um novo vírus RNA pode ocorrer. Isso potencialmente acontece mesmo que não se alimente de animais silvestres, assim como ocorreu com o vírus hendra (outra doença emergente, vírus da família Paramixovirídae de genoma RNA) na Austrália, que passou de morcegos para cavalos e destes para os humanos. Os Coronavírus tem “insistentemente” tentado nos demonstrar isso, desde a emergência do vírus da SARs em 2001 (atingiu 29 países em 6 meses – eixo morcegos – civeta – humanos) em 2010 o MERs (letalidade de 30% ainda em transmissão no Oriente Médio, eixo morcegos – camelos – humanos) e agora o agente etiológico da Covid – 19, recentemente apresentado a espécie humana.
Neste cenário, já no início do século XXI surgiu outra ciência de crise, a dita Medicina da Conservação (One Health) que defende que não se deve abordar as saúdes humana, animal e do planeta separadamente, e sim de forma integrada e transdisciplinar. Permito-me acreditar que a pandemia que está sendo vivenciada no momento (Covid-19) faça com que esta ciência “cole”, e seja internalizada aos órgãos destinados ao controle de doenças infectocontagiosas (saia do ambiente acadêmico), que se realizem conferências internacionais, que sejam integradas as novas legislações assim como ocorreu com a Biologia da Conservação.
Acreditar que as vacina e antibióticos são capazes de resolver tudo é uma ingenuidade que estamos sendo obrigados a perceber, não só pela ausência de tratamentos do tipo para as doenças emergentes e reemergentes, mas também pela percepção de que daqueles agravos a saúde que adquirimos dos animais que domesticamos a 10.000 anos atrás, nenhuma foi erradicada (salvo a varíola).
Paulo Anselmo Nunes Felippe: Médico Veterinário – UFU, Mestre em Genética e Biologia Molecular – Imunologia – UNICAMP; Doutor em Genética e Biologia Molecular – Microbiologia – UNICAMP, Professor Titular – Universidade Paulista UNIP; Diretor do Departamento de Proteção e Bem-Estar Animal – Prefeitura Municipal de Campinas.
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